quarta-feira, 19 de novembro de 2008

PODER JUDICIÁRIO NO SÉCULO XXI - Democratização da administração da justiça

Texto apresentado no evento na cidade de União da Vitória e remetido a apreciação para publicação no IBRAJUS - Instituto Brasileiro de Administração da Justiça.

A justiça não deve produzir injustiças, nem perpetuar dominações e exclusões

A sociedade clama e está sedenta por justiça efetiva, e a justiça se encontra rodeada de desafios, entre elas a sua própria administração. A repetição obsessiva da insatisfação da opinião pública pela carência e atraso nos serviços de justiça credencia o estado de alerta sob o sistema judicial. É preciso descortinar os sistemas judiciais e questionar o papel das instituições quanto ao desenvolvimento de suas atividades com o objetivo de estabelecer as fragilidades e procurar encontrar uma resposta satisfatória aos anseios do povo.
Os desafios e a problemática estão postos à mesa. Como o poder judiciário, no início do século XXI, se encontra perante as transformações da sociedade e de que forma procura responder aos desafios que lhe submetidos. Nas linhas que seguem, procuro identificar algumas das questões emergentes sobre tema do poder judiciário e dos sistemas judiciais e apontar algumas pistas sobre a ótica da democratização da administração da justiça.
O texto não esgota o tema nem tem a pretensão de fazê-lo, mas objetiva aguçar o debate com reflexões que possam contribuir para uma nova cultura e política judiciária. O trabalho acadêmico ou científico é um trabalho em permanente construção, pois a história mostra que não há verdade completa e acabada. A cada instante as coisas se reinventam é necessário estar atento para não sucumbir no vazio deixado pelo passado. Neste sentido, a partir dos estudos já desenvolvidos sobre o tema da administração da justiça é preciso avançar, para não apenas reproduzir aquilo que já está demonstrado, mas apresentar algo a mais, revelador de melhor qualidade e participação democrática nos sistemas judiciais. Uma das tarefas principais é a identificação dos pontos mais frágeis que impedem ou podem ser considerados obstáculos a plena democratização da administração da justiça, com a finalidade de apresentação de propostas viáveis (curto, médio e longo prazo), pautadas nas experiências já testadas e nas possibilidades futuras.
Um importante fator marca profundamente os sistemas judiciais nos últimos anos: o vertiginoso aumento da litigação em juízo que reflete a multiplicação das antigas intervenções[1] e também de novas solicitações junto à justiça, principalmente relacionadas as transformações sociais impulsionadas pela globalização e a afirmação de uma sociedade plural. As questões apresentadas são as mais variadas e complexas, desde as morais mais intrigantes, como a bioética e a eutanásia, ou, ainda, quanto as desigualdades ou exclusões.
Uma das causas do aumento da litigação está relacionada ao fortalecimento do sistema democrático que proporciona mais participação popular e condições para o crescimento da participação do judiciário na solução dos conflitos. Desta constatação decorre outro aspecto que recebe acentuada atenção e consiste na politização do judiciário e na judicialização da política.[2]
A curva de influência do judiciário também é crescente, contudo nem sempre é saudável. O inchaço do judiciário (expressão utilizada pelo Conselheiro do Conselho Nacional de Justiça, Joaquim Falcão, 2007 – www.cnj.jus.br) revela o duplo desafio quantitativo e qualitativo lançado ao sistema judicial moderno que estão intimamente relacionados ao próprio desenvolvimento do fato gerador da democracia, ou seja, a aproximação quanto a igualdade de condições e de oportunidades e o reconhecimento das diferenças.[3] O desafio quantitativo é reduzir o número de demandas e o desafio qualitativo é implementar o aumento de qualidade ao sistema judicial.
O desafio quantitativo esbarra na incapacidade do Estado expandir os serviços e criar uma oferta de justiça compatível com a procura verificada. Por outro lado, a opção pela adoção restrita de respostas quantitativas não são suficientes e podem facilmente reproduzir as entropias e alimentar os círculos viciosos, pouco contribuindo para a amenizar os problemas da “justiça”.
Entre as alegadas crises, as reformas realizadas e o movimento de retração e expansão dos sistemas judiciais, as soluções propostas, na maioria dos casos, tratam da adoção de medidas paliativas, como forma de equacionar as disparidades mais latentes. Aos poucos percebe-se um incremento de planejamento nas ações dos sistemas judiciais, que são medidas salutares, principalmente, para o saneamento dos gargalos judiciais. Além das medidas já adotadas e daquelas que deveriam ser implementadas, se torna cada vez mais necessário acrescentar mais qualidade aos sistemas judiciais em face as novas exigências, influências e saberes. Um caminho mais propício passa pela implementação de um viés democratizante a todo o sistema de resolução de conflitos.
Um relevante ingrediente do diagnóstico do sistema de justiça é a transição paradigmática estatal e os reflexos no sistema de resolução dos conflitos.[4] Fenômeno recente na história e em constante expansão, apresenta os desafios para uma nova configuração dos conceitos e órgãos jurisdicionais sob a ótica global (Tribunais Internacionais ou Transnacionais) e uma nova contextualização das variantes do cenário local, regional, nacional e global, por meio de fatores históricos, sociais e culturais, principalmente para harmonizar as complexidades da sociedade plural e multicultural[5] e reduzir as desigualdade e assegurar as diversidades. A prevenção de futuros problemas e a correção dos já existentes são passos importantes, mas não suficientes. É necessário imprimir e estabelecer a melhoria de qualidade do sistema de resolução de conflitos e do sistema judicial, que ainda é detém maior parcela de responsabilidade.
A disseminação da democracia na vida social implica na reorganização e reestruturação dos sistemas judiciais sob a mesma ótica, pois pensar de modo diverso implicaria no atraso significativo e descompasso das atividades judiciais com as atividades sociais. A pluralidade democrática, por meio da participação acentuada e a repartição de poder partilhada entre todos os atores e agentes, deve também refletir uma pluralidade de sistemas de resolução de conflitos, ao lado do sistema judicial.
O sistema judicial não pode ser o único sistema admitido para a resolução dos conflitos. O modelo de justiça mais democrático, acessível e participativo, passa pelo estabelecimento e afirmação de uma pluralidade de sistemas de resolução de conflitos, que deverão estar integrados com o sistema judicial, de modo alternativo, complementar ou suplementar. A pluralidade dos sistemas de resolução de conflitos nada mais são do que desdobramentos da pluralidade democrática e da vida social onde novos caminhos são abertos ou reabertos. A coesão e a pacificação social não pode ser mais um monopólio estatal e a redistribuição das funções da justiça passam a ser compartilhadas com outras forças (internacionais e atores privados) e níveis (local, regional, global). Os meios alternativos de resolução de litígios na esfera judicial (juizados especiais), ou extrajudicial (mediação, arbitragem), e de outras instâncias judiciais a nível internacional (tribunais além das fronteiras nacionais), incrementam ou complementam os sistemas judiciais nacionais.
Outro aspecto relevante é que o funcionamento adequado do sistema de justiça não está adstrito exclusivamente a bagagem técnica e jurídica e ao bom manejo da lei. É preciso mais. A excelência da prestação jurisdicional e da pacificação dos conflitos exige que os agentes responsáveis por assegurar a justiça sejam qualificados e preparados para o desempenho de suas funções. Os novos contornos assumidos pela chamada vida moderna entendem os seus reflexos na forma e conteúdo das profissões, inclusive as ligadas ao mundo jurídico, operando transformações e exigindo adaptações e novas formatações. Por outro lado, para realizar tudo aquilo que se almeja de uma boa justiça é necessário um grande consumo de tempo, de dinheiro, de energia. Também há uma estrita relação com os campos[6]: econômico quanto aos recursos pessoais e materiais; social quanto a exclusão, inserção e indiferença derivadas das soluções das controvérsias ou pela inviabilidade de acesso e suas implicações; cultural quanto a influência das decisões no campo dos costumes, tradições e da qualidade de vida das pessoas; e político quanto as medidas públicas adotadas ou omitidas.
Portanto, é fácil notar que a “justiça” está relacionada com os demais espaços da vida, além de exercer e sofrer influências de e sobre todos eles. Aqui reside a importância de melhor compreender a administração da justiça e os novos desafios do poder judiciário no início do século XXI. A complexidade atual do aparato de justiça não é somente científica ou técnica, mas também administrativa. Engana-se quem pensa que a tarefa do juiz é apenas resolver o litígio entre as partes por meio do julgamento ou da conciliação. Essa é a primeira e a última das atribuições, mas a partir dela há outras missões fundamentais nem sempre visíveis. As funções administrativas[7] estão com mais freqüência e intensidade interligadas as funções jurídicas e judiciais, pois a resposta célere e eficiente também é resultado de uma boa administração processual, estrutural, material a cargo do juiz condutor do feito.
A estrutura administrativa, constantemente incrementada por novas descobertas e anseios, torna-se gigante e dificulta o amplo e irrestrito conhecimento de suas possibilidades e potencialidades. As estruturas complexas reforçam o afastamento entre o autor de uma ação e as conseqüências do seu ato, enfraquecendo o sistema de prestação de contas e de responsabilização. A menor negligência pode representar inúmeras conseqüências futuras, com prejuízos que implicam em refazer o trabalho ou na demora de recuperação do tempo e dos recursos.
Portanto, é imprescindível analisar a administração da justiça neste atual contexto e de que forma a melhor administração poderá contribuir para a construção de um sistema judicial mais justo e eficiente. A sistemática adotada pela Constituição de 1988 determina que o poder executivo não é gestor exclusivo do erário. O artigo 99 assegura a autonomia financeira e administrativa ao poder judiciário (auto-governo do judiciário como prefere a doutrina européia). Os tribunais elaborarão suas propostas orçamentárias dentro dos limites estipulados conjuntamente com os demais poderes na lei de diretrizes orçamentárias e apresentam autonomia administrativa para condução dos seus trabalhos. O ministério público e a defensoria pública também possuem autonomia administrativa e financeira (respectivamente artigos 127, 2º e 134, 2º). Ao executivo compete organizar e proporcionar condições para a advocacia pública. Ainda resta lembrar que os advogados também são responsáveis pela administração da justiça, individualmente ou por meio de associações ou do órgão de classe.
A autonomia e a divisão das atribuições e competências, entre e dentre os órgãos, pode levar a primeira conclusão de que cada órgão é responsável única e exclusivamente por sua parte no trabalho da realização da “justiça”. Contudo, a administração da justiça deve pautar-se pela união de esforços de todos os órgãos, entidades e agentes envolvidos, inclusive dos auxiliares da justiça, das associações e de todas as pessoas. O sistema não pode se fechar sobre si e deixar conscientemente de fora quem, afinal, deverá preencher a sua centralidade, ou seja, todas as pessoas. A principal decorrência do fechamento do sistema foi aumento, ao longo do tempo, de uma grande massa de excluídos que agora começam a ter a oportunidade, ainda que sem a paridade ideal de forças, de participar do sistema judicial.
Por outro lado, a centralidade das ações depositadas no poder judiciário[8] precisam ser redistribuídas em diversos níveis e fases[9], pois somente com uma gestão democrática e compartilhada será possível conseguir atingir o objetivo da excelência da justiça e assegurar os direitos dos cidadãos. As “rivalidades” e as posições jurídicas devem ser restringidas as discussões realizadas no processo e não devem de forma alguma se tornar empecilho para a administração do sistema judicial. A integração administrativa não afeta a independência quanto ao julgamento, apenas viabiliza que o julgamento ocorra de forma mais racional possível. O tribunal é uma organização e aqueles que integram o tribunal (os magistrados, os membros do ministério público, os advogados, as partes), na medida das suas atribuições e competências, são responsáveis pela sua gestão.
O judiciário, o ministério público e a defensoria pública integram a administração pública, assim como os poderes legislativo e executivo. A diferença reside no grau de administração conferido a cada ente estatal, mas todos concorrem para a realização dos fins do Estado. Por outro lado, o legislativo e executivo (principalmente este último) precisam ter a percepção de que também integram a administração da justiça e devem viabilizá-la sob duas vertentes: primeira, deve aportar os recursos materiais para estruturação e manutenção do sistema judicial; segunda atuação deve ser sob a perspectiva dos conflitos judiciais, onde precisa exercer bem seu mister e evitar o aumento indiscriminado de demandas, ou seja, cumprir as suas funções e atribuições constitucionais e legais não sobrecarregando o judiciário de conflitos; e também fazer todos os esforços para solucionar de modo mais rápido e dinâmico as demandas submetidas a apreciação do judiciário, ou seja, respeitar e agir de acordo com as decisões judiciais, evitando atrasos ou abusos quanto aos direitos reconhecidos pelo judiciário.[10]
É necessário superar todos os empecilhos que atrapalham a integração e o bom relacionamento entre a interioridade de poder ou sistema de justiça e a sua exterioridade, ou seja, dos órgãos e agentes judiciais com os usuários deste sistema. E mais, dentro do sistema de justiça é necessário estabelecer laços de confiança e cooperação visando a realização conjunta das tarefas do sistema. Destaco, ainda, para a uma atenção redobrada as complexidades e dimensões sociais e humanas voltadas para a construção de uma realidade ativa e verdadeiramente emancipatória. É imprescindível acertar os ponteiros do relógio do sistema judicial com os ponteiros do relógio da sociedade, para evitar a derrocada do sistema judicial e proliferação de conclusões irônicas de que “mais vale um mau acordo do que uma boa demanda”. Outrossim, o incremento da democratização notabiliza-se pela substituição de formas autoritárias e arbitrárias de poder pelas formas compartilhadas de poder emanadas de baixo para cima e não impostas de cima para baixo.
A democratização da administração da justiça é uma dimensão fundamental da democratização da vida social, econômica, cultural e política. A democratização deve procurar criar um cenário favorável a leveza, visibilidade, comunicabilidade, rapidez, exatidão, consistência no tratado das resoluções dos conflitos. Os sistemas devem aportar na transparência baseada na avaliação e na prestação de contas das atividades, para que cumpra com exatidão a confiança depositada pela pessoas nos meios de resolução dos conflitos.
Então, é necessário aprofundar as hipóteses de democratização da administração da justiça. Aqui esboço algumas pistas de investigação: de que forma a democracia participativa e o maior envolvimento e participação dos cidadãos, individualmente ou em grupos organizados, pode contribuir para a melhora qualitativa da administração da justiça (somente com a plena democratização da administração da justiça será possível, num momento posterior, eliminar as desigualdades visíveis e invisíveis do direito substancial e formal, com prevalência do direito substancial sobre a formal); qual o papel das ações coletivas de grupos por meio da democracia associativa; como incrementar a democracia direta e o aproveitamento das melhores opções oferecidas; ainda na democracia direta, em relação aos órgãos do poder judiciário (interna e externa); como aproveitar todos os saberes e os conhecimentos na busca de aperfeiçoamento de todo o sistema da administração da justiça, por meio da aplicação dos conceitos da sociologia das emergências e da ecologia dos saberes e da hermenêutica diatópica (conceitos desenvolvidos por Boaventura de Sousa Santos na obra “A gramática do tempo”. São Paulo: Editora Cortez. 2006) ; e a implementação da democracia virtual e a utilização e o emprego coordenado de todos os avanços tecnológicos, com atenção redobrada para evitar a exclusão digital. Ainda, é necessário estar atento as experiências inovadoras e criativas relacionadas aos sistemas aplicados a nível nacional e internacional.
A interferência e influência da utilização de técnicas privadas na administração pública é cada vez mais comum e devem ser incentivadas, na medida em que contribuam para o aperfeiçoamento do sistema judicial. As medidas devem passar por fórmulas centralizadoras e descentralizadoras, de acordo com a natureza do objeto tratado. Por exemplo, desde já é identificável a imprescindibilidade da criação de um órgão capaz de congregar o controle administrativo de todos os envolvidos na realização das atividades de justiça, não apenas do poder judiciário, com a finalidade de planejar, coordenar e organizar as tarefas com profissionalismo e visão conjunta das perspectivas futuras.
Para finalizar, reforço a idéia de que a sociedade passa por intensas transformações que refletem direta ou indiretamente sobre os sistemas judiciais. A construção de uma sociedade mais justa e menos desigual passa pelo aperfeiçoamento dos sistema judiciais e pela diminuição gradativa de sua utilização, pois assim a justiça pode deixar de produzir injustiças e de perpetuar dominações e exclusões.


[1] O acentuado número de excluídos do sistema de justiça começa a ter oportunidades mais concretas e reais de litigação pela facilitação do acesso ao direito e à justiça.
[2] Este tema não será diretamente tratado no presente trabalho, porém revela-se ligado a diversas questões que serão abordadas quanto a administração da justiça.
[3] O tema da democracia é corriqueiramente tratado com primazia pelos autores no âmbito dos poderes executivo e legislativo. A ausência de vasta indicação doutrinária entre democracia e sistema judicial não importam em ausência de interesse pelo tema e da democratização dos sistemas de resolução de conflitos. Ao contrário, na medida em que é acionado com mais freqüência o sistema judicial exige e reforça a necessidade de maior democratização na administração do sistema judicial.
[4] As transformações ocorrem de modo cada vez mais intenso e os pensadores lutam para conseguir acompanhar o ritmo das transformações. As instituições e os cidadãos também não compreendem integralmente ou deixam passar desapercebidos muitas destas transformações, as quais refletem diretamente nas relações sociais e são “perceptíveis” e “visíveis” por meio das desigualdades sociais. A vertente da justiça (compreendida em sentido amplo) e as instituições, os agentes e as pessoas precisam estar atentos e devem promover a todo tempo a democratização, sob pena de sucumbirem as transformações provocadas pela incessante corrente liberal.
Num passado recente, o judiciário não possuía a mesma importância do executivo e do legislativo e inúmeras vezes aquele era manipulado por estes. Atualmente, os tribunais passaram a desempenhar um papel de relevante destaque na estrutura dos poderes estatais, principalmente após o acentuado descrédito dos parlamentos e dos sucessivos escândalos de corrupção. Os meios de comunicação ganham mais destaque e visibilidade. O avanço das políticas liberais depositou no judiciário a confiabilidade e a previsibilidade para os mercados e a expansão do capitalismo. Assim a efetividade do poder judiciário tornou-se uma condicionante ao desenvolvimento econômico. Também não se pode desprezar o papel fundamental da justiça para a prevenção da criminalidade e assegurar a pacificação dos conflitos. Em contrapartida, o aumento do protagonismo do poder judiciário também proporcionou um crescente ativismo judicial, com um potencial emancipatório e redistributivo. Os desafios e repercussões da globalização imprimem um novo ritmo em face das relações desenvolvidas no âmbito do sistema judicial marcada pelo parâmetro transnacional. Repercutem na criação e no aumento da importância dos chamados tribunais internacionais que obrigam a reconfiguração dos conceitos sob a ótica global, sem de desprender das realidades social e cultural a nível local, regional e nacional. A complexidade da atual sociedade plural e multicultural proporcionou a trivialização das relações do cidadão com os atores do sistema de justiça, esvaziando o mito da sacralização do juiz.
[5] As complexidades da sociedade plural e multicultural são inúmeras e estão relacionadas com o sistema de justiça. As principais características podem ser sintetizadas pela: 1. inserção da mulher no mercado de trabalho; 2. maior acumulação de riqueza; 3. mudança no comportamento tradicional das famílias; 4. inserção das classes trabalhadoras em novos circuitos de consumo, anteriormente fora de alcance; 5. redução progressiva dos recursos do Estado com o aumento excessivo do número de beneficiários; 6. a maior propagação das ideias acima acentuadas pelos meios de comunicação

[6] Assim, não importa quanto se gasta para se oferecer a “justiça”, mas na medida em que a justiça se torna demasiadamente cara ela pode se tornar um problema econômico, com repercussões políticas, sociais e culturais. Em geral, a justiça é cara e proporcionalmente mais cara para as pessoas economicamente menos favorecidas. Assim a lentidão do aparelho judicial acarreta um custo econômico adicional.
[7] Uma hipótese visível da afirmação é o tempo trabalho dos juízes consumido com a administração das suas atividades: na definição de rotinas processuais, na organização interna da unidade jurisdicional, na condução das atividades administrativas dos auxiliares da justiça, no contato pessoal com os atores do processo para a definição de medidas a serem tomadas, na burocracia dos expedientes rotineiros, na aplicação de medidas de qualidade ao trabalho.
[8] A gramática nacional e estrangeira foca excessivamente no poder judiciário as questões referentes a resolução dos conflitos. São consideravelmente reduzidas as obras que tratam das questões relacionadas a justiça, sob o enfoque e atenção de todos os agentes que integram o sistema judicial. Ainda há por parte dos críticos uma estreita correlação entre a crise do judiciário e a crise do sistema judicial. É preciso destrinçar as responsabilidades e ônus de cada instituição ou agentes vinculados ao sistema de justiça, além de atribuir parcelas a todas pessoas, pois em primeira ou última análise se socorrem do sistema.
[9] Por exemplo, os advogados exercem uma função primordial no sistema de justiça por meio das diversas medidas de condução da situação concreta, pois são um filtro natural quanto ao ajuizamento da demanda perante o poder judiciário. A negociação, a mediação, o aconselhamento, a prevenção são algumas das formas que devem ser utilizadas pelos advogados e podem representar melhorias para o sistema da administração da justiça com enorme potencial de democratização. Os membros do ministério público podem propor medidas coletivas de alto relevância social que atingem o maior número de pessoas. O executivo pode evitar a proliferação de demandas cumprindo as determinações legais e não infringindo-as.
[10] Exemplos de medidas que devem ser adotadas administrativamente pelo executivo e o legislativo: a aplicação imediata da jurisprudência consolidada, inclusive com extensão dos efeitos para quem não ingressar na justiça e independentemente de súmula vinculante (como ocorreu nos dois casos isolados do FGTS e IRSM), pagar os precatórios (dívidas dos entes públicos reconhecidas no judiciário), traçar políticas administrativas conjuntas com o judiciário para maximizar os resultados de seus órgãos que atuam junto à Justiça (Advocacia Geral da União, Procuradoria da Fazenda, Receita Federal, INSS, etc), disponibilizar bancos de dados para os órgãos do sistema judicial entre outras medidas.

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