terça-feira, 13 de março de 2012

PRIMEIRA PUBLICAÇÃO DO GPC


As Faculdades de Direito da Universidade Estadual de Ponta Grossa e da Universidade de Coimbra sob uma perspectiva luso-brasileira: um olhar brasileiro a partir de solo português.

Vinícius Dalazoana 
viniciusdalazoana@yahoo.com.br

No início do ano de 2011, soube, a partir de uma pesquisa realizada no site do Escritório de Assuntos Internacionais da Universidade Estadual de Ponta Grossa, que recentemente havia sido firmado um convênio com a Universidade de Coimbra, para a implementação de um programa de mobilidade acadêmica internacional. Esta possibilidade significava a abertura de uma porta já há muito almejada, de modo que rapidamente busquei os documentos requeridos pela instituição lusitana e efetuei a inscrição – ou, como preferem nossos amigos portugueses, os “os procedimentos de candidatura”. No início de maio, recebi a aceitação da candidatura proposta, e, de setembro a dezembro do mesmo ano, cursei o primeiro semestre do ano letivo 2011/2012. No presente momento, está em curso o segundo semestre do referido ano, que terá seu encerramento com os exames no mês de junho.
Com base nesta já não tão pequena experiência, assim como em debates com outros acadêmicos da UEPG que estão realizando o mesmo programa– razão pela qual a redação deste texto pode ser considerada bastante democrática e indiretamente coletiva – intenciono traçar um breve comparativo entre os cursos de Licenciatura – formato adotado em Portugal – e de Bacharelado – como denominamos na instituição campesina – em Direito.
Alguns dos aspectos mais marcantes da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra são sentidos logo nos primeiros dias. É que é impensável – para não dizer impossível – adentrar o pátio universitário mediante a porta férrea e não se deixar impressionar com a imponência da construção medieval. Tudo aqui é tendencialmente magnífico: a Reitoria, o Instituto Jurídico, a Biblioteca Joanina (construída com muito ouro de timbre verde e amarelo) a Capela de São Miguel, a Sala dos Capelos, enfim, somente quem aqui esteve tem a exata noção do se está a descrever. Turistas do mundo todo – com especial referência aos muitos orientais e aos sempre presentes brasileiros – diariamente revelam em suas expressões o encanto causado por esta Universidade.
Por outro lado, embora as críticas aos procedimentos burocráticos da Universidade Estadual de Ponta Grossa não sejam poucas, um aluno conimbricense – coimbrão, ou ainda coimbrense, conforme se prefira – que, porventura, viesse a estudar em nossa Universidade de origem, sentir-se-ia num pólo de avançados procedimentos administrativos e invejável desburocratização! Exageros a parte, a verdade é que arcaísmos ainda imperam na organização administrativa da Instituição coimbrã, com muito mais força – por incrível que possa parecer – do que na UEPG. Apenas para citar um exemplo: os alunos de mobilidade estudantil, como eu, possuem uma caderneta, em papel, na qual os professores assinalam a nota obtida nas avaliações e subscrevem-na, muito semelhantemente aos boletins que, em nossa infância, eram recebidos pelos pais no dia de entrega dos resultados; assim, uma pergunta que ronda a comunidade brasileira é qual seria a solução para o caso de alguém perder ou extraviar o seu “boletim”? Ainda não sabemos a resposta.
Ainda no que respeita à estrutura física das Faculdades comparandas, é preciso destacar – ainda que o faça com pesar – a colossal diferença, seja em termos quantitativos, seja em termos qualitativos das suas respectivas bibliotecas. É que, para além da biblioteca da Universidade Estadual de Ponta Grossa, já em si mesma, deixar a desejar – problema que tem sido diminuído com o notável esforço das últimas gestões do Centro Acadêmico Carvalho Santos –, a biblioteca da Universidade coimbrense tem um espólio bibliográfico que ocupa, neste momento, cerca de sete mil metros de prateleiras, nas quais se distribuem aproximadamente quatrocentos mil volumes existentes – entre livros e revistas.
Talvez o ponto de maior destaque de nossa instituição em relação à Faculdade de Coimbra seja, porém, a relação de proximidade que existe entre docentes e discentes. De fato, não conheço nenhum acadêmico brasileiro que esteja em Coimbra e não sinta falta desta característica das nossas universidades. As conversas que se desenrolavam nos corredores do prédio do Curso de Direito, no – para mim – saudoso “Bloco A”, a abordagem sem um formalismo excessivo, o respeito que não se confunde com temor referencial, e, porque não dizer, as oportunidades de encontro fora da ambiência universitária possibilitam verdadeiras amizades, dão margem a profícuos contatos profissionais e, indubitavelmente, catalisam o processo de aprendizagem.
Este distanciamento profissional que se vivencia em Coimbra radica, possivelmente, numa característica que lhe é muito marcante e perpassa toda a dinâmica coimbrã: o seu formalismo. Com efeito, este apego às tradições e às formas delineia com bastante força o próprio modo de ser do ensino universitário. É que o aludido distanciamento, se existe fora do ambiente universitário, não é menos real também dentro das salas de aula – com raras e muito honrosas exceções, justiça feita.
Assim, não são incomuns aulas nas quais o Professor regente da matéria – da cadeira, como aqui se diz – profere uma brilhante palestra, admita-se, mas sem qualquer espaço para a participação dos estudantes e a formulação de questões. Esta lacuna acaba por retirar um pouco do brilho das aulas “magistrais” – para adotar mais uma terminologia muito cara a esta Casa Universitária.
Quando se senta em um banco escolar conimbricense logo se nota, ao menos nas aulas “magistrais”, outra diferença central entre as maneiras de se lecionar o direito. De fato, o ensino em Coimbra, tal qual já era de se esperar, é especialmente acadêmico, é dizer, privilegia-se uma sólida formação teórico-doutrinal, ao passo que na Faculdade de Direito ponta-grossense o ensino é prático-problemático. Noutro falar: exceções ressalvadas, os Professores da Universidade Estadual de Ponta Grossa colocam a ênfase na resolução de problemas concretos, voltando-se, muitas vezes, para as atividades forenses, e pouquíssimas vezes para a atividade acadêmica.
Além disso, não se pode passar por este ponto sem tecer algumas considerações sobre o famigerado ensino “manualesco” do direito. É que, infelizmente, e com as sempre honrosas exceções, cuja menção é despicienda porquanto de todos conhecida, repetidamente se transveste sob um ensino supostamente “prático” uma insuficiência teórica, que se traduz em lições doutrinariamente rasas e com raras reflexões teóricas, assentadas, daí a terminologia usada acima, em manuais destituídos de maior profundidade conteudística – quando não em apostilas que apostam alto na memorização de macetes para concursos. No cerne deste problema – o da baixa densidade teórica de muitas lições – encontra-se este outro, muito conhecido e praticamente inegável: o ensino do direito tornou-se, na imensa maioria das Universidades brasileiras, um ensino “concurseiro”.
É que com a explosão do mercado dos concursos, propiciada pela estabilidade financeira que o empregador Estado garante, nem as Universidades escaparam da corrente de afeiçoamento do mundo jurídico aos programas dos editais publicados pelo Poder Público. Mais claramente: os bancos universitários deixam, progressivamente, de formar acadêmicos e cidadãos com capacidade de reflexão para formar concurseiros especialistas em memorização, e assim, e cada vez mais, perdem sua identidade e confundem-se com os “cursinhos preparatórios”.
Não se está aqui a fazer uma crítica direcionada aos concursos, propriamente ditos, nem aos ditos “cursinhos” e muito menos aos referidos profissionais. O âmbito da reflexão é bem menos extenso: apenas se está a afirmar que o ensino universitário não pode perder a sua essência crítica, reflexiva, socialmente engajada, politicamente responsável pelas questões debatidas na comunidade em que se insere, e nem o ensino do direito pode prescindir de uma profunda formação teórica e de uma sempre presente reflexão problematizante. Docentes e discentes, ambos, tem este dever e este direito.
Neste sentido, como era de se esperar, a Universidade de Coimbra tem uma invejável influência na sociedade portuguesa. Apenas para dar um pequeno exemplo, visto que, se aprofundasse esta questão incorreria num indesejado desvio de rota, diversos professores da sua Faculdade de Direito estão diretamente relacionados às mais importantes reformas legislativas lusitanas das últimas décadas: o Código de Processo Civil (J. Alberto dos Reis), o Código Civil (Vaz Serra, Pires de Lima e Antunes Varela), a legislação fiscal (Teixeira Ribeiro), o Código Penal (Eduardo Correia), a legislação comercial (Ferrer Correia) e o Código de Processo Penal (Figueiredo Dias) constituem os casos mais destacados desta dialética relação da Escola com a sociedade.
Feita esta breve e necessária digressão, importa sublinhar, ainda no que diz com a sistemática de ensino, que o mencionado acento que a Escola de Coimbra coloca na formação teórica não importa, necessariamente, no distanciamento em relação à realidade jurídico-forense subjacente, na medida em que existem, ao lado das “aulas magistrais” (ou aulas teóricas), as aulas “práticas”. Explica-se: a carga horária de cada disciplina da licenciatura, em geral, é de cinco horas por semana. De regra, estas cinco horas dividem-se em três horas para as aulas teóricas e duas horas para as aulas práticas. Se, por um lado, as aulas teóricas funcionam aos moldes descritos acima, as aulas práticas se constituem duma sistemática bastante parecida com as aulas da UEPG. Ou seja, existe uma maior interação entre o professor e o aluno, que, agora sim, está expressamente autorizado, e até mesmo incentivado a formular perguntas e participar mais ativamente da aula. Neste tipo de aula, como se pode depreender de seu nome, enfatiza-se a resolução de casos práticos e a discussão de problemas concretos.  
Já por esta carga horária semanal das aulas é possível compreender outra diferença importante entre as duas Universidades: o tempo de dedicação, seja de professores, seja de alunos. Aqui poderíamos abordar uma ampla plêiade de razões, mas, certamente, fugiríamos ao escopo inicial deste texto. A verdade é que no Brasil, ou ao menos em nossa instituição, os alunos iniciam seus estágios de forma precoce, em muitos casos permitem que esta atividade ocupe todo o seu tempo disponível, e, ainda, não raras vezes o tempo dedicado ao estágio é intelectualmente pouco frutuoso. Se não é este o único motivo da falta de tempo dedicado a um estudo teoricamente mais sólido, dificilmente se poderá negar sua centralidade na abordagem da questão.
Por outro lado, o escasso tempo – ressalvem-se as exceções – que os professores de direito dispõem para as atividades típicas da carreira docente é sintomática de um problema de fundo muito maior, ao qual não posso, aqui, dedicar maior espaço, mas apenas traçar-lhe alguns contornos: ocorre que a grande maioria dos docentes da Faculdade de Direito da Universidade Estadual de Ponta Grossa acumulam a esta profissão outra, por vezes mais do que uma. Professores dedicados integralmente à carreira acadêmica ainda são poucos, mas, felizmente, cada vez em maior número. Não obstante, quando se observa a questão sob uma perspectiva oposta, pode-se compreender que o problema de fundo, ao qual fiz menção anteriormente, na verdade consiste, possivelmente, na falta da justa valorização da carreira docente, constatação que nos leva, por sua vez, ao problema de todo o sistema educacional brasileiro, que reclama com urgência uma reforma estrutural. Todavia, conforme já se disse, esta discussão não constitui objeto deste trabalho.
Conexiona-se a esta realidade um outro obstáculo que esperamos vencer nos próximos anos: a inexistência de um programa de pós-graduação strictu sensu especificamente jurídico na Universidade Estadual de Ponta Grossa. Existe, como se sabe, o Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais Aplicadas, cujo corpo docente é composto por alguns professores da Faculdade de Direito e em cujo corpo discente se encontram também alunos oriundos da área jurídica. Todavia, em que pese a qualidade do referido Programa e de sua Revista – “Emancipação” – já é passado o momento da abertura de um programa de mestrado em ciências especificamente jurídicas.
Para tanto, faz-se, desde logo, imprescindível que a cultura da pesquisa que se tem instalado, sobretudo nos últimos anos, dentro da Faculdade de Direito seja ampliada e incentivada, traduzindo-se, assim, no aumento de linhas de pesquisa coordenadas pelos professores, na qualificação de suas titulações acadêmicas e na multiplicação do atual número de publicações científicas, seja de professores, seja também dos alunos. 
Por fim, se no que respeita às pesquisas científicas ainda temos uma longa caminhada, há que se ressaltar, sob pena de grave injustiça, o salutar trabalho de internacionalização da Universidade Estadual de Ponta Grossa que tem sido desempenhado nos últimos anos. Certo é que a Universidade de Coimbra recebe estudantes de toda parte da Europa – com destaque quantitativo para espanhóis, seguidos pelos italianos – e que tem no cosmopolitismo de seu corpo discente uma marca famosa e já plurissecular. Contudo, isto em nada retira o mérito da UEPG neste sentido.
De fato, a Universidade Estadual de Ponta Grossa firmou convênios e abriu portas em importantes instituições européias, com especial destaque para as casas portuguesas. Prova cabal do que se diz é que, limitando-se ao Curso de Bacharelado em Direito – âmbito ao qual se circunscreve este texto – existem, atualmente, dois acadêmicos realizando mobilidade acadêmica na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra – vale lembrar que são disponíveis apenas duas vagas – e um acadêmico na Faculdade de Direito da Universidade do Porto, instituição na qual, aliás, mais dois acadêmicos realizaram o mesmo programa no semestre passado. Noutras palavras, apenas um semestre após a abertura do primeiro edital, já são cinco os acadêmicos da Faculdade de Direito da UEPG que tiveram a oportunidade de uma temporada de estudos em solo português. Os primeiros passos, pensamos, são bastante satisfatórios.
Pois bem. Penso ter atingido o objetivo ao qual me propus no início desta reflexão: esboçar um quadro geral sobre pontos de comparação entre minha instituição de origem e a instituição que ora estou frequentando. Evidentemente, a reflexão foi breve, e muitos outros pontos poderiam ter sido cotejados. Todavia, do que se disse é possível depreender algumas considerações.
Ainda precisamos investir, e fortemente, em infra-estrutura, seja no que respeita às instalações físicas ou à tecnologia, seja no que diz com a nossa biblioteca, cujo acervo é ainda muito parco. Também urge a implementação de um programa de pós-graduação strictu sensu, que somente será possível se as atividades de pesquisa forem ainda mais valorizadas, bem como se mostra importante um aprofundamento na formação teórica tanto de discentes quanto de docentes. É inegável, contudo, que nos últimos anos passamos por um processo de renovação do quadro docente que se mostrou muito salutar. Em boa medida por força disto, estamos retomando a senda da pesquisa científica e das publicações, baluartes de qualquer Faculdade de Direito que se pretenda qualificada. O programa de mobilidade estudantil institucional está a pleno vapor, o que também nos enche de esperança para os anos vindouros. Estes fatores, somados à integração que existe entre professores e alunos, radicada num relacionamento de proximidade desconhecida em Portugal, fazem-nos crer que estamos caminhando – ainda que não a passos tão largos como talvez desejássemos – para um rumo certo, em que ensino, pesquisa e extensão públicos, gratuitos e de qualidade não se limitarão a uma retórica idealista e eleitoreira.
            

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