segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Os precedentes e o processo civil no Brasil e nos EUA

Trabalho enviado a EMAGIS do TRF da 4ª referente a conclusão do curso de currículo permanente de processo civil
Resumo

O debate sobre a aplicação dos procedentes no processo civil brasileiro ainda é incipiente, principalmente se considerarmos a tradição da aplicação dos precedentes no sistema norte-americano. A hibridação dos sistemas e famílias jurídicas common law e civil law, a adoção de institutos privilegiados de um sistema em outro e o processo de globalização judicial, requer uma discussão mais aprofundada da forma de aplicação dos precedentes no sistema processual brasileiro. A instituição da súmula vinculante e da repercussão geral de recurso inflamam a polêmica. O presente texto procura identificar algumas pistas, após apontar diferenças entre os sistemas, no sentido de encontrar um caminho para ampliação do debate no sentido de encontrar a mais adequada forma de aplicação dos precedentes ao processo civil brasileiro.

Sumário: Introdução. 1. Common law e civil law - a hibridação dos sistemas judiciários. 2. Questões relevantes quanto a aplicação dos precedentes no direito brasileiro. Conclusão. Referências Bibliográficas.

Palavras chaves: precedentes, processo civil, common law e civil law.


Only a totally static society could tolerate a completely rigid system of law.
M.D.A. FREEMAN


Introdução

O processo civil é um instrumento relevante para o direito, a justiça e a cidadania. Os direitos postos ou em ebulição são na maioria das vezes exercidos, garantidos e assegurados pelos mecanismos do processo civil. Àqueles que pensam que o processo civil se resume a aplicação das normas dispostas em códigos e legislação esparsa, proponho o exercício de reflexão em torno de algo mais significativo e menos positivista, com a finalidade de buscar no direito de tradição norte-americana alguns exemplos de como o processo civil se reconstrói a cada instante na dinâmica efervescente das sociedades atuais.
O estudo sobre os precedentes é um dos temas em consonância com a temática acima exposta e ainda carece de aprofundamento necessário para ser bem utilizado no nosso sistema processual.[1] O presente trabalho visa expor considerações comparativas entre os sistemas judiciais brasileiro e norte-americano, com a finalidade de investigar e encontrar algumas pistas para instigar os leitores à meditação quanto ao papel de alguns institutos de direito processual, em especial, sobre os precedentes, e a sua aplicação no sistema processual brasileiro.

1. Common law e civil law - a hibridação dos sistemas judiciários

Qualquer análise comparativa que se pretenda fazer sobre os sistemas judiciários brasileiro e norte-americano é uma tarefa árdua e extensa, que requer exaustiva investigação em face das inúmeras situações que envolvem os sistemas judiciários dos dois países. Para cumprir com o objetivo do presente trabalho é necessário, ainda que brevemente, traçar o contexto histórico e tratar da formação do sistema judiciário, para analisar comparativamente como, atualmente, ocorre a hibridação dos sistemas e posicionar o estágio atual sobre a aplicação dos precedentes e suas implicações sobre o direito processual civil brasileiro.
Inicialmente, aponto algumas características marcantes entre Brasil e EUA. Os territórios dos dois países estão entre os cinco maiores do mundo. As economias entre as 10 maiores do mundo. A semelhança que aproxima os dois sistemas judiciários é representada pela federação, contudo foram distintos os processos de formação dos Estados Federados, principalmente norteados pelo estilo de colonização e fixação nas novas terras pela qual passaram entre os séculos XVI a XIX.
O sistema judiciário brasileiro, desde os primórdios optou pela utilização dos princípios do civil law (também conhecido como romano-germânico), enquanto que o sistema norte-americano optou por seguir e aperfeiçoar as diretrizes do common law. Na origem, enquanto para o sistema romano-germânico a lei é fonte primeira, para o direito da common law, a jurisprudência é o mais alto nível das fontes jurídicas. Vale ressaltar que inúmeros autores já se propuseram em apontar as semelhança e as dessemelhanças entre as duas grandes famílias jurídicas.[2]
O contexto histórico é relevante para delimitar o caminho pelo qual cada sistema judiciário percorreu para chegar até o estágio atual.[3] Um olhar atento e pormenorizado revela que atualmente os sistemas judiciários, brasileiro e norte-americano, se aproximam em muitos aspectos, devido ao fenômeno que designei de hibridação dos sistemas judiciais.
A hibridação dos sistemas judiciários não é uma exclusividade do sistema brasileiro ou norte-americano, mas uma tendência verificada em todos os países do mundo. Também não é uma exclusividade dos sistemas judiciais. A hibridação decorre das recentes e constantes transformações que a sociedade atual atravessa, por meio da qual os conceitos, os fundamentos, os valores e as tradições são modificados para se adequarem às novas realidades, principalmente alterados devido aos processos de globalização. Independentemente da posição sociológica (modernidade reflexiva em Ulrich Beck e Anthony Giddens; modernidade líquida em Zygmunt Bauman; modernidade de oposição em Boaventura de Sousa Santos, entre outras), econômica (por exemplo, a economic analysis of law com origem em Chicago), ou mesmo ideológica que se adote, é certo afirmar que o mundo (leia-se as sociedades) mudou e pauta-se de um modo diferente do passado. Os sistemas judiciários, ainda que em menor grau e velocidade, também aportaram mudanças significativas que influenciaram e continuam influenciando decisivamente sua forma de atuação, principalmente marcadas pelas transformações operadas pela emergência e afirmação do constitucionalismo.
A característica principal relacionada à hibridação dos sistemas judiciários está ligada à forma de aplicação e interpretação do direito, por meio das decisões judiciais e refletem as principais funções atribuídas ao poder judiciário de ambos os países. E a reflexão aponta para algumas conclusões, entre elas, a de que não subsistem com rigor metodológico, exceto ainda em livros acadêmicos e nas tradições, as distinções quanto a forma de aplicação do direito conforme os sistemas do common law e do civil law. Os sistemas formados sobre a influência do civil law já não operam exclusivamente sob o código de que o juiz é a “boca da lei” e aplica tão somente a lei por meio da exegese, ao contrário, ocorreu um significativo implemento de formas de interpretação do direito e da lei que implicam numa guinada na forma de atuação dos profissionais do sistema judiciário. Por outro lado, os sistemas formados no common law, cada vez mais legislam sobre temas que antes pertenciam ao campo das tradições e de interpretação dos aplicadores dos sistemas judiciários, bem como as decisões dos tribunais passam gradativamente a operar com conceitos, formas e fundamentos antes exclusivos do regime romano-germânico.
A hibridação permitiu que o sistema judiciário brasileiro, de formação originária no civil law, importasse ao longo dos anos, diversos instrumentos jurídicos e formas de atuação consagrados no common law. A implantação e utilização de mecanismos originários da common law no direito brasileiro permitiram a hibridação e aproximaram, até mesmo ultrapassaram em alguns casos, as fórmulas tradicionais e do modo como as foram concebidas. Podemos citar entre outras adaptações da common law no sistema brasileiro: a suspensão condicional do processo no direito penal; o amicus curiae previsto para as ações diretas de constitucionalidade, na repercussão geral de recursos, nas ações coletivas; ampliação das formas alternativas de resolução de conflitos, como a mediação, conciliação, transação; mecanismos de resolução coletiva dos direitos, ainda que incipientes em comparação com o direito norte-americano; o efeito vinculante nas decisões das ações diretas de constitucionalidade; o respeito e a utilização com mais frequência das decisões das corte superiores pelos juízos inferiores, reforçadas por meio dos recentes institutos da súmula vinculante e da repercussão geral de recursos.[4]

2 Questões relevantes quanto a aplicação dos precedentes no direito brasileiro

A análise da utilização dos precedentes nos sistemas judiciários brasileiro e norte-americano será objeto de análise mais acurada no presente trabalho e não pode se afastar de quatro fatores: a) a intensidade e a tradição dos precedentes no sistema norte-americano; b) a valorização gradual dos precedentes no sistema brasileiro, potencializado pelos novos instrumentos jurídicos da repercussão geral de recursos e súmula vinculante; c) o afastamento da premissa que considerava exaustivo e suficiente o sistema legislativo, seja por parte do legislador, principalmente devido a diversidade de situações fáticas e a impossibilidade de previsão legal exaustiva que contente os envolvidos, ou do judiciário, que detém atualmente maior grau e autonomia interpretativa da legislação; d) a expansão do ativismo judicial e da judicialização da política.[5]
Em primeiro lugar, a doutrina do stare decisis, originária do direito inglês e adotada pelo direito norte-americano, assume o significado de um comando mediante o qual os tribunais devem dar o devido peso e valor ao precedente, de forma que uma questão de direito já estabelecida deveria ser seguida, desde que a decisão anterior fosse impositiva. Representa, em síntese, a possibilidade jurídica de que o juízo futuro declare-se vinculado a decisão anterior, em face da identidade de casos e de modo a assegurar que no futuro, em caso análogo, venha a ser decidido da mesma forma.
Há uma íntima correlação entre o stare decisis e a segurança jurídica, já que ela assegura que o direito não se altere de forma errática, constante, imprevisível e permite que a sociedade presuma que os princípios fundamentais estão fundados no direito, ao invés de ideologias ou voluntariedades pessoais dos membros dos Tribunais. O precedente judicial influi direta ou indiretamente na aplicação do direito pela jurisdição inferior, pois o leading case apresenta interesse na medida em que vincula os chamados juízes inferiores às decisões dos juízes superiores e evita a instabilidade dos pronunciamentos judiciais, vez que isto nos conduziria à incerteza jurídica. Em segundo, as características principais do atual sistema de precedentes do common law podem ser assim sintetizadas: a) uma especial ênfase nas decisões judiciais como o núcleo do sistema legal; b) um papel muito subordinado concedido aos escritos jurídicos; c) o tratamento de determinadas decisões judiciais como vinculativas sobre outros juízes; d) a forma de sentenças judiciais e o modo de apresentação dessas.[6]
É necessário ainda considerar que a doutrina norte-americana, enumera uma série de explicações para a utilização da idéia de precedente vinculante, conforme Porto:[7] a) em decidindo as demandas, os juízos devem dirimir questões de direito e na mesma jurisdição, o direito deve dar a mesma resposta para as mesmas questões legais; b) justiça imparcial e previsível significa que casos semelhantes serão decididos da mesma forma, independentemente das partes envolvidas, numa homenagem ao princípio da isonomia e do prestígio ao valor ‘segurança jurídica’; c) stare decisis representa opiniões razoáveis, consistentes e impessoais, a qual incrementa a credibilidade do poder judicante junto a sociedade; d) além de servir para unificar o direito, serve para estreitar a imparcialidade e previsibilidade da justiça, facilitando o planejamento dos particulares, em face do padrão pré-fixado de comportamento judicial. Em síntese, a existência da doutrina da stare decisis acredita implementar qualidade e segurança na prestação do serviço justiça e, por decorrência, melhorar o convívio social.
A pureza teórica da common law, em sua perspectiva originária, tem sido mitigada na atualidade. Apesar de não se cogitar da supressão do precedente, passou-se a concebê-lo apenas como o ponto inicial da solução da lide. Espancou-se definitivamente a inexorabilidade do leading case.
Já nos sistemas de direito civil, o stare decisis da common law não é geralmente usado porque viola o princípio de que só o legislador pode elaborar a lei e o juiz nas suas decisões deve se pautar pela legislação, restando um papel secundário para a liberalidade judicial na interpretação do direito. Em teoria, os juízes e os tribunais inferiores não são geralmente vinculados aos precedentes e a jurisprudência estabelecidos pelos tribunais superiores. Na prática, a necessidade de ter previsibilidade significa que os juízes e os tribunais inferiores geralmente observam a jurisprudência dos tribunais superiores. Entretanto, como não há obrigatoriedade de observância são comuns os julgamentos contraditórios em detrimento da segurança jurídica esperada pela atuação por meio da prestação jurisdicional.
O sistema judiciário brasileiro em face do momento atual aponta para algumas das questões mais intrigantes quanto a problemática da aplicação dos precedentes. Em apertada síntese relaciono algumas considerações de grande monta para compreender melhor a relação direta da aplicação dos precedentes com o direito processual civil no direito brasileiro:
a) a diversidade de direitos assegurados e a ampliação do acesso à justiça, bem como a evolução no reconhecimento dos direitos das minorias e da pluralidade democrática das sociedades, não comportam mais uma interpretação restrita aos textos legais ou ao positivismo, que não conseguem abarcar toda a riqueza de situações externalizadas pela sociedade;
b) a liberalidade de interpretação e a hermenêutica adotada pelos tribunais inferiores e juízes, em muitos casos, não atendem satisfatoriamente os anseios de realização de justiça, previsibilidade das decisões judiciais e segurança jurídica, pois são consubstanciadas num modelo ultrapassado que não valoriza os precedentes e a jurisprudência produzida pelos tribunais superiores;
c) a inobservância dos precedentes e da jurisprudência, principalmente pelas próprias cortes superiores, desvaloriza e revela um descrédito no sistema judiciário, no reconhecimento do precedente como relevante instrumento de aplicação do direito, além de impedir e dificultar o adequado e urgente tratamento que deve ser dado a matéria;
d) há ausência de produção doutrinária e de debate (público e acadêmico) sobre a relevância dos precedentes, bem como a definição de novos critérios de interpretação e aplicação dos precedentes ao sistema processual brasileiro;
e) a inversão dos pontos de partida e chegada na formação da decisão judicial: a liberalidade do julgador em aplicar a jurisprudência dos tribunais superiores, muitas vezes sem um critério que determine o grau de importância do julgado ou reflita a posição atual ou majoritária da jurisprudência sobre o assunto, ou seja, a utilização indiscriminada de julgados para fundamentar uma decisão pelo método irreflexível – o juiz toma a decisão e depois procura precedentes ou jurisprudências para reforçar a sua interpretação, como se fosse um critério de validação da sua decisão – ressalte-se que no sistema norte-americano, o precedente é o ponto de partida no processo de adequação dele ao caso concreto;
f) não há ainda no sistema processual brasileiro um balizador (legal, doutrinário ou jurisprudencial) com contornos mínimos definidos sobre o método de utilização nas decisões judiciais dos precedentes oriundos dos recém criados institutos da repercussão geral de recursos e súmula vinculante;
g) o processo de aperfeiçoamento dos mecanismos de decisões judiciais e dos sistemas judiciários, mediante a utilização de recursos das novas tecnologias, ao passo que projeta uma maior amplitude no trato de diversas questões por aumentar a qualidade, de outro modo, torna visível as arestas deixadas pela utilização do sistema de decisões judiciais;
h) a judicialização da política por meio das decisões judiciais e da expansão do ativismo judicial, promove a expressão da diversidade de opiniões dos julgadores que é salutar para o regime democrático, mas em situações extremas pode comprometer o primado da previsibilidade e segurança jurídica depositados nos sistemas judiciais; e
i) o aumento de espaço para o julgador interpretar e aplicar o direito, em face da opção legislativa em estabelecer instrumentos normativos com conceitos abertos, menos precisos e detalhistas, diante da dificuldade de conseguir prever todas as situações do mundo fático e de se obter consenso nas casas legislativas que abarque todas as correntes e segmentos da sociedade, ainda que tais deliberações seja tomadas por meio de representantes políticos eleitos.

Os pontos acima especificados revelam tendências dos sistemas judiciais. Repise-se que elas reforçam a tese de que há no sistema mundial uma forte corrente para a hibridação dos sistemas, pois os sistemas judiciais não conseguem sustentar suas premissas apenas nas tradições e costumes. Por outro lado, os fluxos de informação, a flexibilidade das ações operados pelo processo de globalização propiciam a troca acentuada de mecanismos que se completam e complementam e provocam transformações de todas as ordens e graus. Não poderia ser diferente com os sistemas judiciais. Não se pode falar que apenas o sistema processual brasileiro sofre alterações, pois as relações são contínuas e desencadeiam reflexos para todos os lados. Passo no próximo tópico a considerar alguns pontos que emergem deste emaranhado de situações acima especificados, como forma de procurar pistas importantes para uma nova adequação do sistema processual brasileiro a partir do aproveitamento da experiência norte-americana do precedente, ressalvadas as adaptações e ajustes necessárias a realidade brasileira.

Conclusão

Os sistemas judiciários, independentemente da origem, devem seguir as decisões anteriores, pois trata-se de um fato natural e um procedimento necessário nos assuntos da vida quotidiana. Uma decisão judicial por ter idêntico curso de outra tomada anteriormente, não só confere a vantagem da experiência acumulada do passado, mas também poupa o esforço de se ter que pensar no problema a cada vez que o mesmo surge novamente. Assim, as guias de conduta futura aplicam-se não apenas aos sistemas jurídicos.
A aplicação criativa dos precedentes implica no desenvolvido constante de melhorias, pois a infinita variedade de fatos nas situações humanas inviabiliza a aplicação das decisões anteriores de modo puramente mecânico, mas proporciona um espaço para a moldagem progressiva das normas a fim de atender novas situações que possam surgir.
A utilização dos precedentes não implica na aplicação cega e indiscriminada, a exemplo do que ocorre corriqueiramente com a utilização e reprodução de jurisprudência nas peças processuais do direito brasileiro. É comum a citação de ementas sem a análise adequada do conteúdo do voto condutor do julgado e da análise das semelhanças entre o caso paradigma e o caso em que a jurisprudência é utilizada. Tampouco a vinculação dos juízos inferiores proposta pelo sistema de precedentes engessa o sistema judicial, pois os precedentes não se devem aplicar de forma automática ou mecânica. É preciso analisar precedente cuidadosamente para determinar se existem similaridades de fato e de direito efetivamente suscitadas e decididas e para estabelecer a posição atual da Corte com relação ao caso anterior”. Portanto, o sistema de precedente não se aplica desde que possa ser demonstrado que o direito foi mal compreendido ou mal aplicado ou onde a decisão anterior seja evidentemente contrária à razão. O precedente representa, em verdade, um ponto de partida para a análise e julgamento do caso concreto e não uma restrição ao poder de julgar.
O fator que irá diferenciar a utilização dos precedentes é a intensidade. A sistemática dos precedentes inicialmente mais utilizada no direito norte-americano é cada vez mais aplicada ao sistema brasileiro. Ocorre que a tradição brasileira ainda não se deu conta de que atualmente os precedentes são utilizados, contudo, sem nenhum rigor formal ou parâmetro pré-estabelecido, fato que prejudica um dos pontos fortes do regime de precedentes (a previsibilidade das decisões judiciais e a segurança jurídica). Assim, para a utilização adequada do sistema de precedentes é necessária a análise detalhada dos fatos e do direito envolvido no julgamento, questão ainda incipiente no direito brasileiro, sob pena de desfigurar e descaracterizar os preceitos que sustentam o regime dos precedentes. Somente assim será possível verificar a identidade de caso e se é o caso de aplicação do precedente. Não é por outra razão que os bancos escolares americanos dão primazia para o estudo dos precedentes considerados mais relevantes já decididos pelas Cortes Superiores americanas.
Se os juízes, na teoria do civil law, não estão aptos a fazer o direito, na prática, eles estão produzindo normas ao proferirem as suas decisões. Não se trata de transformar o juiz em legislador ou mesmo usurpar atribuição constitucional do legislador. É inegável que existe uma constante interação entre regras e situações fáticas. O uso demasiado e positivo das leis pode estereotipar a própria estrutura e as atividades da sociedade, enquanto que a livre abordagem do julgador pode permitir maior interação das forças sociais no exercício da moderação ao poder judicial, mas também deve estar atenta para não comprometer a estabilidade. No dizer de Freeman, os precedentes tem sido sempre o sangue dos sistemas jurídicos.[8] Acrescento que não é qualquer sangue que pode ser utilizado em qualquer momento ou situação. Para tanto, é imperioso e urgente repensar as formas de utilização de precedentes, com a finalidade de promover a mais adequada interpretação deste importante instrumento jurídico.
Nesse sentido Marinoni afirma que os postulados da civil law da igualdade e segurança pela estrita aplicação da lei passa por mudanças, num modelo já transformado pelo constitucionalismo; o sistema de precedentes que foi estabelecido para tutelar a segurança no ambiente do common law, em que a possibilidade de decisões diferentes para casos iguais nunca foi desconsiderada e, “exatamente por isto, fez surgir o princípio, inspirador do stare decisis”, de que os casos similares devem ser tratados do mesmo modo (treat like cases alike).[9] Logo, como referiu Freeman,[10] somente uma sociedade totalmente estática poderia tolerar um sistema legal totalmente rígido.
Para finalizar, aponto como medidas salutares a serem conferidas aos precedentes no sistema processual civil brasileiro, a promoção do debate e discussão democrática e a fixação de parâmetros mínimos e objetivos de hermenêutica e interpretação, para que os precedentes e as leis possam ser bem utilizados na elaboração das decisões judiciais e haja harmonia com os demais meios e instrumentos de pacificação social.

Referências Bibliográficas

CAPPELLETTI, Mauro. Il processo civile italiano nel quadro della contrapposizione “civil law-common law” (Appunti storico-comparativi), in Processo e Ideologie.

DAVID, René. Os Grandes Sistemas do Direito Contemporâneo. Direito Comparado – São Paulo: Martins Fontes Editora, 2.ed. 1993.

FREEMAN, M. D.A, Lloyd´s. Introduction to jurisprudence. Seventh Edition. London: Sweet & Maxweel LTD. 2001. p.1381.

MATEI, Ugo. Stare Decisis. Il valore del precedente giudiziario negli Stati Uniti D'America. Giuffrè. 1988.

MARINONI, Luiz Guilherme. Juiz não pode decidir diferente dos tribunais. Revista Consultor Jurídico, 28 de junho de 2009. Disponível em http://www.conjur.com.br/2009-jun-28/juiz-nao-direito-decidir-diferente-tribunais-superiores. Acesso em 05/01/2010.

________ A transformação do Civil Law e a Oportunidade de um Sistema Precedentalista para o Brasil. Revista Jurídica. Sapucaia do Sul. v. 380, p. 45-50, 2009.

PORTO, Sérgio Gilberto. Sobre a common law, civil law e o precedente judicial. Academia Brasileira de Direito Processual Civil. Disponível em: http://www.abdpc.org.br/abdpc/artigos/Sergio%20Porto-formatado.pdf. Acesso em 05/01/2010.

RADBRUCH, Gustav - Lo spirito del diritto inglese, Milão, Giuffrè, 1.962.
[1] O presente ensaio partiu das reflexões levantadas pelo professor Luiz Guilherme Marinoni, especialmente quanto as considerações abaixo reproduzidas e colhidas do texto de sua autoria: “No Brasil, além de não existirem investigações doutrinárias sobre a jurisdição do common law, há lamentável preconceito em relação ao Direito americano. Tenta-se negar a importância dos institutos de common law sem se conhecê-los, surgindo, por conseqüência, alegações mal fundadas sobre o papel do juiz e acerca dos limites da jurisdição. Fala-se de um juiz que cria o direito e de um legislativo que não ocupa o seu espaço, como se o juiz do common law fosse um “ser estranho” e a jurisdição deste sistema pudesse, sem qualquer pudor, adentrar na esfera de poder reservada ao Parlamento. Além disto, quando se nega a importância do estudo do common law, não se percebe que a separação entre os sistemas de civil law e common law é fundada na tradição destes sistemas, e, por isto, não pode desconsiderar aspectos políticos e culturais que estão à base da suas respectivas histórias e, em particular, os valores que deram origem à common law inglesa e aqueles da Revolução Francesa. Também se esquece que a jurisdição de civil law, durante a história, teve a sua natureza transformada, tendo o constitucionalismo inegavelmente aproximado o sistema de civil law ao de common law”.

[2]CAPPELLETTI, Mauro. Il processo civile italiano nel quadro della contrapposizione “civil law-common law” (Appunti storico-comparativi), in Processo e Ideologie; DAVID, René. Os Grandes Sistemas do Direito Contemporâneo. Direito Comparado – São Paulo: Martins Fontes Editora, 2.ed. 1993; MATEI, Ugo. Stare Decisis. Il valore del precedente giudiziario negli Stati Uniti D'America. Giuffrè. 1988; RADBRUCH, Gustav - Lo spirito del diritto inglese, Milão, Giuffrè, 1.962.
[3] Reproduzo as diferenças históricas apontadas por Marinoni por razões de brevidade, clareza e objetividade: “É preciso atentar para a diferença entre a história do Poder Judicial no common law e a história do Direito Continental Europeu, em especial aos fundamentos do Direito francês pós-revolucionário. Na Inglaterra, ao contrário do que ocorreu na França, o Judiciário não só constituiu uma força progressista preocupada em proteger o individuo e em botar freios no abuso do governo, como ainda desempenhou papel importante para a centralização do poder e para a superação do feudalismo. Aí a unificação do poder se deu de forma razoavelmente rápida, com a eliminação da jurisdição feudal e de outras jurisdições paralelas. E os juízes colaboraram para esta unificação, afirmando o direito de ancestral tradição na nação, sem qualquer necessidade de rejeição à tradição jurídica do passado. Bem por isto não se castrou o Poder Judicial ou se restringiu a capacidade de o juiz decidir, limitando-o à aplicação do produto do Legislativo. Na verdade, o Judiciário chegou a confundir-se com o Legislativo, uma vez que ambos representavam uma só força contra o poder do monarca.A Revolução Francesa, no entanto, procurou criar um Direito novo, capaz de eliminar o passado e as tradições até então herdadas de outros povos, mediante o esquecimento do Direito francês mais antigo e da negação da autoridade do ius commune. A revolução francesa, como toda revolução, ressentiu-se de forte dose de ilusões românticas e utopias, gerando dogmas como o da proibição de o juiz interpretar a lei. Para a Revolução Francesa, a lei seria indispensável para a realização da liberdade e da igualdade. Por este motivo, entendeu-se que a certeza jurídica seria indispensável diante das decisões judiciais, uma vez que, caso os juízes pudessem produzir decisões destoantes da lei, os propósitos revolucionários estariam perdidos ou seriam inalcançáveis. A certeza do direito estaria na impossibilidade de o juiz interpretar a lei, ou, melhor dizendo, na própria lei. Lembre-se que, com a Revolução Francesa, o poder foi transferido ao Parlamento, que não podia confiar no Judiciário.O ponto tem enorme relevância. O civil law não apenas imaginou, utopicamente, que o juiz apenas atuaria a vontade da lei, como ainda supôs que, em virtude da certeza jurídica que daí decorreria, o cidadão teria segurança e previsibilidade no trato das relações sociais. Ora, isto significa que, nos países que não precisaram se iludir com o absurdo de que o juiz apenas poderia declarar as palavras da lei, aceitou-se naturalmente que a segurança e a previsibilidade teriam que ser buscadas em outro lugar, exatamente nos precedentes, ou melhor, no stare decisis.” MARINONI, Luiz Guilherme. Juiz não pode decidir diferente dos tribunais. Revista Consultor Jurídico, 28 de junho de 2009. Disponível em http://www.conjur.com.br/2009-jun-28/juiz-nao-direito-decidir-diferente-tribunais-superiores. Acesso em 05/01/2010.
[4] A súmula vinculante e a repercussão geral de recursos são frutos da reforma constitucional do judiciário. Com a súmula vinculante, a decisão do Supremo Tribunal Federal pode vincular o poder judiciário e a administração pública às suas decisões reiteradas em matéria constitucional. Com a repercussão geral, o recurso extraordinário só será admitido para temas de comprovada relevância, o recorrente deve comprovar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, além da possibilidade do sobrestamento dos recursos, inclusive nas instâncias inferiores, até a solução do caso paradigma.
[5] Vale ressaltar que o item apontado na letra “d” não será abordado no presente trabalho devido a limitação do tema proposto, mas não pode ser desconsiderado em face da relevância e imbricação com as questões ora investigadas.
[6] Freeman, M. D.A, Lloyd´s. Introduction to jurisprudence. Seventh Edition. London: Sweet & Maxweel LTD. 2001. p.1381.
[7] PORTO, Sérgio Gilberto. Sobre a common law, civil law e o precedente judicial. Academia Brasileira de Direito Processual Civil. Disponível em: http://www.abdpc.org.br/abdpc/artigos/Sergio%20Porto-formatado.pdf. Acesso em 05/01/2010. p. 9-10.
[8] FREEMAN, M. D.A, Lloyd´s. Introduction to jurisprudence. Seventh Edition. London: Sweet & Maxweel LTD. 2001. p.1381.
[9] MARINONI, Luiz Guilherme. Juiz não pode decidir diferente dos tribunais. Revista Consultor Jurídico, 28 de junho de 2009. Disponível em http://www.conjur.com.br/2009-jun-28/juiz-nao-direito-decidir-diferente-tribunais-superiores. Acesso em 05/01/2010.
[10] FREEMAN, M. D.A, Lloyd´s. Introduction to jurisprudence. Seventh Edition. London: Sweet & Maxweel LTD. 2001. p.1381.

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